sábado, 3 de maio de 2008

Linguagem oral versus linguagem escrita



A linguagem humana representa a forma mais facilitada de transformar e projectar, por meio de símbolos ou códigos adstritos a determinada comunidade, a acção em pensamento, e este em acção.

Desta forma se revela e perpetua a relação sentida, inter e intrapessoal, que os indivíduos mantêm com o seu contexto sócio-cultural.

A linguagem constrói-se num tempo físico e num espaço psíquico. O primeiro corresponde ao desenvolvimento neurobiológico que subjaz às melhorias neuromotoras relacionadas com a produção oral; o segundo está vinculado ao devir dos aspectos cognitivo-linguísticos que performam a linguagem compreensiva.

Adquirir a linguagem oral representa, pois, a ascenção a uma escala de saberes que configura todas as dimensões implícitas na actividade intercomunicativa. Estes saberes incluem-se tanto nos aspectos da Forma (fonética, fonologia, morfologia e Sintaxe), como nos do Conteúdo (dimensão semântica), ou ainda nos aspectos do seu uso em contextos pluridimensionais (a Pragmática).

Existem períodos considerados óptimos para a aquisição da linguagem na criança. Até aos cinco anos de idade, é possível encontrar, na criança, lacunas relativamente aos domínios da fonologia e morfosintaxe. Admite-se, porém, que a partir desta faixa etária a estrutura gramatical básica deverá iniciar a sua estabilização. A criança deverá revelar, cada vez menos, desvios na produção dos modelos linguísticos estabelecidos.

A necessidade de aceder, o mais precocemente possível, ao código linguístico oral, baseia-se na necessidade de construir, paulatinamente, um sistema de representações de carácter interno, que o represente., Neste sistema se baseia um segundo sistema simbólico, constituído pelo conjunto de símbolos que permitem o acesso à linguagem escrita.

Uma criança que persiste em erros ou desvios no seu sistema fonético-fonológico -primeira “cara” da linguagem produtiva – estará, igualmente, persistindo em representações mentais incorrectas, desvirtuadas ou desviadas daquelas que o modelo-língua lhe oferece.

Ora, mediante o uso que é feito das referidas representações para a materialização da linguagem escrita, esta revelará toda a imprecisão que estiver inscrita e automatizada no seu sistema interno de registos e configurações dos padrões sonoros da fala e da organização dos elementos interlexicais que constituem os enunciados.

A criança é, desta forma, candidata ao insucesso escolar, no que, em particular à linguagem escrita, diz respeito.

É frequente encontrarmos crianças que recorrem a processos de simplificação de fala, mesmo tendo ultrapassado a faixa etária que justifica o seu uso.
Assim, podemos encontrar uma fala infantil onde poderão estar presentes, entre outros, o seguinte tipo de erros ou desvios, de carácter fonológico:
- substituiçãode fonemas, seja por modo, ponto, vozeamento ou múltiplas combinatórias entre eles. Exemplo: topa (sopa); sebra (zebra); cala (cara); xelado (gelado); boua (bola).
- omissãode fonemas e omissão de sílabas, sobretudo em palavras polissilábicas. Exemplo: futa (fruta); baco (barco); icola (escola); sudado (soldado); neca (boneca); pateio (sapateiro).
- processosde harmonia consonantal, explícitos sob forma de redução dos traços distintivos dos elementos fonémicos relativos ao domínio da palavra.
Exemplo: fafé (café); memelo (camelo); papato (sapato); frutra (fruta); cirrarro (cigarro); rarrafa (garrafa).
- metátese : processos de mudança de lugar de fonema ou sílaba, dentro do contexto palavra a que se agregam.
Exemplo: corcodilo (crocodilo); fotorgafia (fotografia); persente (presente); libredade (liberdade).
- distorção : processos equivalentes a um desenvolvimento linguístico muito primário no qual a diferenciação ou discriminação entre sonoridades se encontra em fase de grande elementaridade.
Exemplo: abe (árvore); fafia (fotografia); possefoda (professora); culeilo (coelho).
- epêntese, de vogal ou de fonema.
Exemplo: comere (comer); feruta (fruta); descadas (escadas); dovo (ovo).

Cada um destes tipos de imprecisões fonológicas corresponde, em processos normais de aquisição linguística, a distintos momentos de desenvolvimento e respectivas faixas cronológicas.

Assim, o processo metátese corresponde aos últimos momentos da aprendizagem da fonologia, não devendo persistir para além dos seis anos de idade sob pena de se transpor, em seu momento, para a produção escrita.
Este tipo de ocorrência ou desvirtuamento da linguagem produtiva estará, certamente, bem presente se analisarmos suficiente número de produções escritas de alunos com distintos níveis académicos e sócio-linguísticos. Alguns exemplos podem ser visíveis na palvra “enfremeira” “parteleira” ou tantos outros.

O processo harmonia consonantal representa, por outro lado, a fase mais primitiva da aquisição dos contrastes interfonémicos e corresponde a períodos remotos do desenvolvimento linguístico na criança, com forte incidência entre os 18 e os vinte e quatro meses de idade.

Relativamente à substituição, esta forma de simplificação deverá ser analisada à luz de critérios tanto da fonética como da fonologia, isto é, deve ser analisada a possibilidade de articulação do respectivo fonema bem assim como a sua inclusão ou integração em contextos de co-ocorrência silábica, trampolim para o acesso ao significado.
As substituições dentro da mesma classe, sobretudo nas consoantes fricativas (xelado por gelado; faca por vaca; cassaco por casaco, etc.) são frequentes e extravazam “os muros da pré-escolaridade”, constituindo-se como forma persistente de incorrecto uso ou produção, na escrita espontânea.
Neste, como em qualquer processo de linguagem desviada (entenda-se “desviada” como produção que não corresponde ao modelo-alvo do sistema linguístico em análise) deve ser considerado qual o fonema em questão, bem assim como o tipo de sílaba no qual se inclui.

A omissão de fonemas constitui a primeira estratégia que a criança usa para superar a impotência perante a dificuldade de articulação. Num segundo momento, ainda que não consiga realizar o fonema, a criança omiti-lo-à e, só posteriormente, acederá à sua correcta articulação.

Particularmente neste tipo de processos de fala simplificada, devemos considerar qual o tipo de fonema em questão, qual o tipo de sílaba a que pertence, e ainda a extensão e uso da palavra na qual se situa. Na verdade, existem tipos de sílabas que são particularmente sensíveis a processos de omissão, sobretudo aquelas que comportam os fonemas passíveis de ocupar o lugar de coda tal como ocorre nos fonemas /l/, /r/ /s/ Entre elas assinalamos o tipo de sílaba formada por Consoante-Consoante-Vogal (ex: cobra) Consoante-Vogal-Consoante (ex: corda. mosca, soldado), Vogal-Consoante(ex: erva, escadas, alto) e Consoante-Consoante-Vogal-Consoante (ex: frasco, Abril, comprar)
Assim, a palavra fralda representa uma sílaba do tipo CCVC ou CrVl. A criança pode omitir o fonema /r/, omitir o fonema /l/, substituir o fonema /l/ por uma semivogal, ou ainda uma combinatória deste tipo de processos.

Aparte os motivos que estão na base destas ocorrências, o facto é que elas se transportam, com frequência, para a escola, espaço onde se faz particular apelo a este tipo de saberes. Desta forma, quanto maior a persistência deste tipo de simplificações da linguagem oral, maior será a possibilidade de ocorrência de insucesso na escrita.

A entrada de crianças com dificuldades fonológicas e fonéticas para a escolaridade básica deve, pois, ser evitada, por quanto tem vindo a ser exposto. Contudo, sempre que estes processos ocorram deve a criança ser acompanhada por técnico especializado a fim de corrigir, reorganizar, consciencializar, analisar os elementos linguísticos a partir dos quais se acede a um determinado significado.
O insucesso escolar “espreita” crianças com este tipo de problemáticas, expressando-se, por vezes, sob forma de comportamentos sociais incompreendidos.

Bem falar para bem ler e melhor escrever é, pois, uma verdade irrefutável.

Contudo, o leque de possibilidades entre o que é falado e o que é escrito pode apresentar algumas nuances diferenciadoras.

Num primeiro grupo podemos incluir aquele tipo de crianças que, falando mal, tanto podem escrever bem como escrever mal.

Num segundo grupo estarão aquelas que, mesmo falando bem, tanto podem escrever bem como escrever mal.

Para qualquer um dos casos aqui referidos, a via fonológica de acesso à linguagem escrita parece revelar lacunas na sua organização interna sendo passível de afectar tantocrianças que “falam mal” como crianças que “falam bem”.

O que é, pois, “bem falar/ falar bem”?

Falar bem equivale a dominar processos (compreensão e expressão) e dimensões (fonética, fonologia, sintaxe, semântica e pragmática) linguísticas, tornando-as adaptáveis à multiplicidade de contextos particulares.

Falar bem é ainda estar em presença de uma representação interna -o modelo linguístico–alvo, sendo possível o acesso à sua estrutura interna e aos distintos níveis de análise que a compõem, a fim de proceder a actividades de linguagem escrita que a solicitam, para o processo de transcodificação fonema-grafema e vice-versa.

O que significa “bem escrever”?

Esta actividade que envolve complexos processos cognitivo-linguísticos, reflecte a tradução dos sinais orais normativos em símbolos gráficos correspondentes que projectam sentidos ou significados. Iniciando-se na representação interna da oralidade e terminando na possibilidade de um qualquer leitor dela poder extrair informação, a escrita atinge domínios conceptuais que se furtam a uma “leitura unidireccional “ do material escrito, tal como acontece na metáfora e em domínios linguísticos que apenas a arte da poesia consegue explicitar.

Em síntese, de uma má representação interna será lógico esperar uma má escrita. Acontece, porém que, algumas crianças, apoiando-se, fundamentalmente, na via lexical de acesso à escrita, conseguem memorizar os símbolos gráficos e respectiva sequência, de molde a conseguir uma escrita baseada em inputs de carácter visual, em detrimento da análise fonológica na qual se faz a correspondência fonema-grafema.

Este tipo de escrita é, no entanto, insuficiente para um domínio total dos processos que entram em jogo na linguagem escrita. O acesso à linguagem escrita com predomínio de uso da via lexical - utilizado em fases avançadas de leitura e escrita espontânea – é insuficiente para um início de aprendizagem da mesma, pois apenas revela eficácia para um léxico familiar e não aquele de baixa frequência de uso, interferindo, por consequência, na compreensão do texto escrito.
A via lexical e sublexical (fonológica) representam as duas vias de acesso à linguagem escrita e permitem uma leitura-escrita passível de confronto com qualquer tipo de texto.
A via sublexical ou fonológica, baseada na correspondência fonema-grafema constitui um relevante meio de acesso à linguagem escrita, pois é a partir do seu uso que se acede a qualquer tipo de leitura e escrita de palavras (familiares e não familiares) reforçando a imprescindível acuidade que está na base da boa leitura.
Porém, esta via de acesso deve ceder lugar, gradualmente, ao predomínio da via lexical pois é através desta que a velocidade leitora se incrementa tornando possível a extracção quer da globalidade do sentido expresso no texto, quer das etapas que se sucedem para o configurar.

Em suma, conhecer os elementos intralinguísticos, mormente aqueles que se agregam à palavra, representa um passo importante para o domínio das competências que conduzem ao sucesso da actividade de linguagem escrita.

O treino persistente de actividades de metalinguagem, particularmente de metafonologia, durante a pré - escolaridade (podendo ser reforçado tal conhecimento nos primórdios da aprendizagem escolar básica), constitui um importante meio de aceder ao sucesso na aprendizagem da escrita.
A linguagem oral, fazendo apelo ao domínio de todas as dimensões que a mesma comporta, facilmente reflecte na escrita todas as inconsistências que a inadequada apropriação de um modelo instituído desenhou, no seu sistema interno de representações.
A prevenção de maus “produtos” em linguagem escrita passa, pois, pelo reajuste das interfaces linguagem oral, versus linguagem escrita, na mira do sucesso em competências escolares quer de carácter global, quer de carácter específico, mormente na acuidade e velocidade leitora, primordiais bases de acesso a múltiplas competências vinculadas quer ao vector académico quer ao vector sócio-profissional.

Rosa Lima

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